terça-feira, 25 de novembro de 2014

Com livros achados no lixo, morador do DF aprende a ler e se torna médico

Órfão de pai aos 2 anos e tendo a mãe alcoólatra e um dos sete irmãos traficante, o médico de Brasília Cícero Pereira Batista, de 33 anos, conseguiu vencer as adversidades estudando a partir de livros que retirava do lixo. Ainda criança, ele saía do Chaparral, onde a família mora até hoje, e percorria 20 quilômetros todos os dias pelas ruas de Taguatinga em busca de comida.

Junto com as sobras de alimentos descartados no lixo, Batista recolhia todos os livros que encontrava e vinis de Beethoven e Bach, atualmente suas inspirações. Ele se formou há menos de três meses e agora sonha em abrir um consultório.

"Meu pai era quem fazia o sustento de casa, e morreu de uma úlcera que provocou hemorragia interna. Minha mãe ficou louca e bebia muito. Ela começou a lavar roupa para fora e a catar latinha no meio da rua, mas não era suficiente. A gente sempre passou fome, tudo o que ela fazia não dava jeito. E meu irmão levava traficante para a nossa casa. Aliados a nossa miséria, tínhamos o alcoolismo e as drogas dentro de casa. Eu saía para buscar comida – a gente não tinha mesmo, não tinha nem o que vestir – e tinha dias que não voltava. Eu não precisava, mas tinha dias que dormia na rua para não ter que aguentar as brigas", lembra.

Na procura por alimento, o garoto encontrou coisas que lhe despertavam uma atenção ainda maior. As páginas cheias de letras e figuras e os discos o deixavam fascinado, ainda que misturados ao chorume que havia no lixo. Cícero sempre reservava um pedaço da caixa que carregava para os "tesouros". Com a ajuda de vizinhos, ouvia os vinis e pôde aprender a sonoridade de cada letra.

"Fui juntando as sílabas e compreendendo as sentenças e palavras. Quando entrei na escola para fazer o primário, já sabia ler, escrever e fazer as operações fundamentais. Entrei tarde, acho que eu tinha 10 anos, eu que pedi para a minha irmã me matricular", diz. "Eu trazia a caixa na cabeça debaixo de chuva e sol. Muitas vezes, escorria secreções dos alimentos e das carnes em mim. Eu parava, descansava um pouco e então seguia para casa."

Entre as obras que encontrou descartadas estavam "O sermão de Santo Antônio aos peixes", do Padre Antônio Vieira, e "A metamorfose", de Franz Kafka, além de "Magnificat" e a cantata "BMV 10" de Bach. O menino também achou livros de biologia, filosofia, teologia, direito e história e passou a colecioná-los em casa. Tudo era lido por ele.

"Amo Bach e Mozart. Junto com os livros, eles me salvaram. Eles falavam mais alto que a fome e me transportavam para outros mundos", conta o médico. "Depois descobri Vivaldi e Strauss e comecei a amar música clássica. Às vezes eu pensava, vendo a vida dos compositores, que se Bethoven era surdo e fez o que fez, eu não poderia tentar? Eu, mesmo com fome, mesmo com adversidades, pobre, negro, não sendo homem bonito, conseguiria chegar lá. E é isso que a gente tem que pensar, que todo esforço é poder."

A inspiração o levou a fazer um teste para o curso profissionalizante de técnico de enfermagem, que valia como ensino médio. A ideia veio dos cuidados que ele tinha com a saúde da família e do gosto por dissecar cachorros mortos ou observá-los ampliados com a ajuda de uma lente achada em máquina de fotografia Polaroid, também tirada do lixo. O jovem foi aprovado em segundo lugar na seleção.

Após concluir os estudos, Cícero decidiu então prestar concurso e passou a trabalhar na Secretaria de Saúde. O pouco dinheiro já era um alívio diante das dificuldades vividas pela família, mas o rapaz queria mais. Três anos depois, fez vestibular para medicina em uma faculdade particular no interior de Minas Gerais, passou e, sem pensar duas vezes, decidiu enfrentar o novo desafio.

Como não podia abrir mão do emprego, o jovem se dividia entre os plantões aos fins de semana no Distrito Federal e as aulas na outra cidade. O salário seguia contado. "Acabei passando fome, cheguei a desmaiar em sala. Por vezes, precisei dormir na rodoviária para economizar", lembra.

Um ano e meio depois, o rapaz conseguiu 100% de desconto em uma instituição de Paracatu (MG) por causa do bom desempenho no Enem. A faculdade se recusou a aproveitar os três semestres feitos em Araguari, e Cícero precisou recomeçar os estudos. Seis meses depois, já em 2008, ele repetiu o resultado e conquistou uma bolsa integral em Brasília.

"Quando vim, eles aproveitaram algumas matérias, mas também não quiseram me progredir de período, portanto eu voltei à estaca zero de novo. Mas eu nunca desisti, continuei trabalhando e fazendo o meu curso. Eu saía do plantão noturno para a faculdade. Era muita dificuldade, tinha dias que eu chegava molhado e sujo porque tinha chovido, eu pegava dois ônibus, e no trabalho eu era obrigado a usar roupa branca", conta.

Sem os custos com passagens de viagens interestaduais e a mensalidade, Cícero pôde se dedicar melhor às paixões. Ele virou frequentador assíduo de sebos e passou a comprar mais livros e vinis. Assim, reforçou a paixão pelos autores e músicos que conheceu por meio do lixo e pôde estender as noções que já tinha na área. As primeiras compras para si foram livros da faculdade de medicina e CDs de música clássica.

Formado em junho deste ano, Cícero atualmente trabalha como médico clínico e generalista em dois hospitais de Águas Lindas e Valparaíso, municípios no Entorno do DF. Ele afirma reconhecer em muitos pacientes um quadro semelhante ao que viveu. "São iguais a mim. São pessoas que muitas vezes chegam com fome, chegam doentes porque não tiveram o que comer".

Para ele, a experiência na infância acaba o ajudando a cumprir o que considera uma missão. "O médico muitas vezes tem essa autonomia de aliviar o sofrimento. Eu me formei em medicina para aliviar o sofrimento de pessoas que estavam como eu."

Fonte: G1

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